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O filme mais adorável e encantador de 2023 está na Netflix e você não assistiu

Uma das grandes vantagens de ser criança é viver experiências como a descrita em “Meu Amigo Lutcha” — descrita com a exatidão possível dos meninos pequenos, que fique claro. Jonás Cuarón toma a lenda mexicana sobre o chupa-cabra, uma fera meio escatológica que ronda pastos e galinheiros durante a noite para beber o sangue da criação, pelo seu avesso. Isto é, logo se sabe que por trás de todo o assombro que possa restar em tramas como essa, importante de fato é a maneira nada óbvia de que o diretor se vale para elaborar temas como a dor do crescimento, desajustes de família, solidão, amizade, que adquirem dimensão de verdadeira tragédia ao longo de certas quadras da vida. Cuarón lida até bem com a preconizada dicotomia entre glórias e maldições da infância, mas seu filme cresce mesmo é quando assume seu lirismo e faz uma aposta desabrida e firme na inocência oculta do mundo.

O pôster de “Jurassic Park — Parque dos Dinossauros” (1993), a distopia em que Steven Spielberg se estende sobre criaturas pantagruélicas de outros tempos, afixado na parede do quarto de Alex não é, definitivamente, um Easter egg, uma surpresa apenas insinuada, uma vez que Cuarón reedita toda uma sequência do filme de Spielberg na virada do segundo para o terceiro ato. Enquanto isso, Alex, o protagonista vivido por Evan Whitten, contesta a mãe, personagem de Brenda Lorena Garcia, quanto a ir para a estância do avô em San Javier, no oeste do México, e numa cena tão curta, o diretor insere quase todos os assuntos que pautarão a história até o final. Pouco antes, o garoto come sozinho, isolado no refeitório da escola em Kansas City, no coração da América, outra das clássicas imagens em filmes com essa abordagem do existir quando não se faz parte da maioria, até que senta-se-lhe ao lado um colega, e o chama de Taquito, em alusão ao prato típico da culinária mexicana. Mesmo tendo de suportar essas ofensivas racistas, lamentavelmente muito comuns inclusive entre crianças, Alex não dá a impressão de se abalar e muito menos de desistir da escola ou ir morar na terra de seus ancestrais, até porque ele é americano. A contragosto, Alex embarca para San Javier, para passar as férias, e então o filme começa a deslanchar.

Há, por evidente, um choque de culturas sobre o qual Cuarón prefere não se debruçar, e a adaptação do personagem de Whitten ao novo ambiente não tem nada de traumática. Os primos, Memo e Luna, excelentes desempenhos de Nickolas Verdugo e Ashley Ciarra, simpatizam-lhe e manifestam lhe querer bem, não obstante tenham em comum apenas o sangue de Chava. O avô dos três, pai de Beto, o pai de Alex, que há pouco sucumbira de um câncer, imprime ao rancho em que fora morar desde o término da carreira na luta livre, aquela mistura um tanto infame de wrestling e vaudeville, um caráter francamente saudosista, e o diretor socorre-se do gancho deixado pela carismática performance de Demián Bichir para introduzir o bichinho que muda a vida daquelas pessoas.

Cuarón, corroteirista de “Gravidade” (2013), do pai Alfonso, permanece no conforto da superfície, com cenas engraçadinhas em que o núcleo infantojuvenil se entrosa à perfeição, mas sente-se em “Meu Amigo Lutcha” a falta de autenticidade de que se falava antes. A homenagem à obra-prima de Spielberg não cai bem, uma vez que é a influência de outro trabalho do diretor que salta aos olhos desde sempre. Lutcha, o monstrinho camarada, se parece muito mais com o alienígena de “E.T. O Extraterrestre” (1982) do que com dinossauros pantagruélicos à cata de um lugar no novo mundo em que são inseridos à força. Aqui, a maior lição talvez seja a que aconselha que escutemos as feras e não lhes invadamos o território. Sem mencionar aquela mais óbvia de se aceitar as diferenças — inclusive as que habitam em nós.


Filme: Meu Amigo Lutcha
Direção: Jonás Cuarón
Ano: 2023
Gêneros: Aventura/Fantasia
Nota: 8/10

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